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Mulheres invisíveis: Vida e morte de Mãe Meque

Fernanda Canofre

I. Primeiro ato

O coração de Meque se partiu pela primeira vez no dia em que ela viu Guerra, o homem por quem era apaixonada desde a infância, entrar na igreja para casar com outra mulher. As famílias dos dois tinham problemas e o pai dela nunca aceitou o romance. Quando conheceu um caminhoneiro gaúcho, que se interessou por ela, Meque resolveu ir embora com ele e deixar São José dos Pinhais, cidade da região metropolitana de Curitiba. “Quando eu estava tentando me matar, lá em Pinhais, foi quando ele me ajudou. Foi assim que nos conhecemos”. Ela nunca mais voltou. Nem nunca mais esqueceu o primeiro amor.

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Quando nos conhecemos, Meque estava vivendo no Parque Harmonia, onde moram cerca de 20 pessoas,  espalhadas pelos galpões de costaneira vazios. Estamos no verão, não há Acampamento Farroupilha, nem movimento algum que lembre as festas do mês de setembro. Nessa época, o Parque, próximo ao rio Guaíba de Porto Alegre, é usado por quem não tem onde morar. Ela se aproxima tímida, rindo, desconfiada da razão para uma jornalista querer entrevistá-la. Quando vê a câmera fotográfica, fica mais desconcertada ainda: “Eu sou a cara da riqueza!”, brinca.

Meque tem 50 anos. A carteira de identidade surrada, porém, diz que tem 49, nascida em 30 dezembro de 1967, em Umuarama, no Paraná. Ela explica que o pai demorou um ano para registrá-la porque era um costume do interior esperar mais filhos, registrá-los todos juntos. O nome que está ali, ela pede para que não seja divulgado porque não quer que os filhos a encontrem. Pelos cálculos dela, já não os vê pessoalmente há 17 anos. Nas ruas, onde vive há mais ou menos esse mesmo tempo, ela é conhecida só como “Mãe Meque”. “De todo mundo ela é mãe. Dos guris, dos homens, de todos. Até dos cachorros”, conta uma amiga, que também vive nas ruas e ganhou dela cadernos e lápis, para voltar a estudar. O apelido “Meque” vem de “mequetrefe”, uma bebida que mistura todo tipo de cachaça barata e que ela gostava de beber.

“Meio século, né? Como é que pode? Eu ainda não acredito que essa cachaceira conseguiu. Eu só uso duas drogas: cigarro e cachaça”, conta. Uma vez chegou a experimentar crack, mas “viu que não era para ela” e nunca mais tocou em uma pedra. Da bebida, ela diz precisar todas as manhãs para conter a tremedeira nas mãos. Ela mostra como fica, enquanto acaricia Princesa, a cachorrinha de 5 meses que encontrou sozinha na rua, cheia de sarna e que agora pula ao redor de suas pernas. Meque narra orgulhosa o tratamento que fez para recuperá-la.

No Harmonia, ela é uma das poucas mulheres. Na tarde em que sentamos para conversar, havia apenas ela, uma amiga e outra mulher que não quis se aproximar. Segundo a Fundação de Assistência Social de Porto Alegre (FASC), as mulheres correspondem a 13,8% da população em situação de rua na Capital. Os números são de uma pesquisa realizada pela UFRGS, encomendada pela Prefeitura, que entrevistou 1.753 pessoas em situação de rua, em 2016. Destas, 242 eram mulheres. A pesquisa não fala sobre mulheres transgênero ou travestis. Nacionalmente, não existem levantamentos ou censos sobre quem vive na rua.

A história de vida de Mãe Meque é um retrato do que significa ser mulher na rua. A defensora pública do Estado de São Paulo Yasmin Pestana, que trabalhou por um tempo com atendimento a mulheres em situação de rua no Núcleo da Mulher da instituição, conta que, nos atendimentos voltados a essa população, a maioria dos que buscavam auxílio eram homens. No caso das mulheres, era mais comum encontrá-las pedindo ajuda por se sentirem ameaçadas de perder os filhos.

“Se uma mulher deixou a família, usou droga, ela violou a norma. É isso que a gente percebe. Um olhar punitivo para essas mulheres, não só nas instâncias criminais, mas muito forte até por parte da assistência social. Como se essa mãe não merecesse ficar com essas crianças”, explica Pestana.

Das histórias que encontrou, a defensora conta que os principais motivos que levam mulheres à situação de rua são: a violência doméstica que muitas sofrem desde pequenas dentro de casa, pelo pai, tio, padrasto; e a questão econômica, que muitas vezes vem atrelada ao uso de drogas. Para muitas, a violência segue depois na própria rua, mesmo quando aceitam companheiros que as “protegem” dos outros. “Difícil uma mulher que não tem histórico de violência doméstica antes ou quando está na rua”, afirma.

II. Segundo ato

Meque, no dia em que contou sua história, no Parque Harmonia | Foto: Maia Rubim/Sul21

Na segunda vez em que o coração de Meque se partiu, ela estava vivendo em Restinga Seca – a cerca de 60 km de Santa Maria. Descobriu que o homem que a “salvou” no Paraná tinha outra. Ela não quis falar sobre ele ou sobre quanto tempo o casamento durou. Fez as malas, pegou os filhos e resolveu “seguir o mundo”. Acabou parando na Região Metropolitana de Porto Alegre, onde descobriu que estava grávida de gêmeos. A filha mais velha já tinha 17 anos.

Mesmo com os bebês ainda pequenos, Meque saiu à procura de emprego porque precisava pagar o aluguel da peça única em que vivia com os seis filhos. Uma cunhada avisou sobre uma vaga de babá na casa de uma família rica, que também tinha acabado de ter gêmeos. Numa manhã de sábado de inverno, nublado, ela desceu na rodoviária de Porto Alegre pronta para a entrevista com os possíveis patrões, marcada para as 7h. Quando se preparava para atravessar a rua, onde ainda não existia o viaduto que separa o trânsito de entrada e saída da Capital, foi atropelada. O motorista não parou para prestar socorro.

O carro seguinte, que iria passar por cima dela, foi quem deu sinal para os outros carros desviarem. “Olha bem. O pobre é pobre, né? Foi uma Brasília, caindo aos pedaços, que me deixou três meses e 21 dias em coma”, conta com voz que oscila entre o riso e o choro. “Depois não vi mais nada. Só aquela luz que veio pra cima de mim”.

Na cabeça ainda tem uma cicatriz de 15 centímetros, os braços e pernas também têm marcas do atropelamento. Um pouco abaixo do joelho esquerdo, Meque mostra os pinos colocados para reparar o osso quebrado. O médico errou na cirurgia. Conforme ela mexe a panturrilha, os pinos despontam debaixo da pele, como chaves de um trompete tocado ao contrário.

Sem ter como trabalhar, depois do coma e de ter perdido a coordenação motora, Meque, aos poucos, foi se encaminhando para a rua. A filha mais velha ficou com os irmãos. Pelo erro, o médico foi condenado a pagar-lhe um salário mínimo pelo resto da vida dela. O motorista da Brasília também. Meque, porém, nunca encostou em nenhum centavo do dinheiro. Ela assinou uma procuração que transfere os valores diretamente à filha, todos os meses.

A renda dela consiste em R$ 87 do Bolsa Família, o que consegue arrecadar nas sinaleiras e com a venda do jornal Boca de Rua. “Eu digo: mais vale levar no rosto um não, do que nome de ladrão. Se uma pessoa me diz que não tem nada, eu digo ‘que Deus abençoe a família toda’”.

A amiga que acompanha a história de Meque conta que se comunica com os filhos pelo Facebook. Eles querem que a mãe saia da rua. Meque, porém, não mantém mais contato com os filhos. “Porque, com certeza, se eles vissem fotos minhas, eles iam ter vergonha”. Não quer que eles te encontrem? “Não”. Por quê? “Porque eles vão me ver na merda. Deu pra entender?”. Mas não tem vontade de reencontrá-los? “Eu tenho medo. Medo da reação deles. Medo de eles saberem que a mãe está há anos e anos na rua, não adquiriu nada, só tá morando na rua… Nem a fisionomia deles está mais gravada na minha mente, porque eu não sei como eles estão”.

Só que ela nunca deixou de ser e se sentir mãe. Quando fala dos filhos, sorri com os olhos, lembra de descrever a personalidade de cada um, de histórias engraçadas que eles aprontavam ainda pequenos. Chora no meio do relato. O medo ainda é uma trava para resolver o sentimento.

III. Terceiro ato

Meque e Princesa, a cadelinha que ela recolheu na rua | Foto: Maia Rubim/Sul21

Meque sentiu o coração se partir mais uma vez, há três anos, quando recebeu a notícia de que o amor da sua vida havia morrido. Nessa altura, ela já havia perdido as contas de quantas vezes a vida tinha lhe dado essa sensação. Ela conheceu Rogério, por quem ainda chora, na rua. Nunca mais teve ou amou ninguém depois dele. “Não teve como ter outra pessoa pra relacionamento, porque ele vai estar sempre na minha presença. Porque nós lutamos e batalhamos”.

Depois que deixou o marido que a traiu, Meque ficou 16 anos sem ter ninguém. Até que conheceu o último companheiro, um morador de rua como ela. Os dois ficaram juntos por oito anos. Começaram vivendo em uma barraca, na Orla do Guaíba, em um ponto próximo ao Parque Harmonia. Nos fins de semana, separavam um dinheiro para fazer churrasco junto com outros recicladores. Durante o dia, passavam catando lixo e puxando carrinho para ter dinheiro para uma casa. Conseguiram construir duas peças na Vila Chocolatão, que ela lembra como uma das épocas mais felizes da vida. “Tinha TV no quarto, TV na cozinha, geladeira, fogão a gás, armário. Uma TV era só para ver a minha novela. Tinha cama box de casal. Guarda-roupa”, lembra orgulhosa.

A remoção da Chocolatão, porém, fez com que os dois tivessem que deixar a casa para trás e se mudar para outro canto, pago com aluguel social da Prefeitura, na Restinga Velha. Foi onde os problemas começaram. “Ele se detonou nas drogas e eu me separei dele. Ele ficou com o apartamento e tudo. Eu levei colchão e voltei a morar na Orla do Guaíba. Três meses depois, eu estranhava que ele não aparecia. Depois fiquei sabendo da morte dele. Mataram ele com três tiros”, conta ela, que nunca soube o motivo da morte. “Dói na carne, dentro do peito. Mesmo morto, ele nunca vai deixar de ser o amor da minha vida. Mais que o primeiro. Porque o primeiro não me valorizou, mas ele me valorizou”.

Ao contrário de grande parte das mulheres em situação de rua, Meque diz que nunca ficou com um homem para buscar proteção. Mas reconhece que essa é a realidade de muitas mulheres. “Aguentam a violência de um, para não ter que aguentar de todos”, diz a educadora social Veridiana Farias Machado, apoiadora do Movimento Nacional da População de Rua do Rio Grande do Sul (MNPR/RS).

“Nunca caiam na nóia que eu caí. Essa vida de moradora de rua, mulher… Homem não, porque eles têm capacidade de defesa, mas pra mulher, não tem. Porque nós somos o sexo frágil. Já imaginou? Tu tá caminhando por aí, com uma sainha como essa que eu estou. Não importa a idade pra eles”, diz Meque.

Ela perdeu as contas do número de vezes em que foi violentada. “Não foi uma, nem duas vezes que eu fui estuprada na rua. Tanto por brigadianos, quanto por morador de rua”. Ou do número de vezes em que acordou no meio da noite, com um homem em cima dela. Em algumas, conseguiu dar um empurrão e afastar o outro corpo. Em outras, não. É o que faz muitas delas terem sempre um cachorro junto. “Esse meu amor aqui”, diz ela olhando e acariciando Princesa.

Os casos de policiais militares são menos recorrentes, mas aparecem nos relatos de várias mulheres em situação de rua. Segundo Meque e a amiga, eles puxam as fichas policiais delas, descobrem “o que devem”, pedem que embarquem na viatura e ao invés de levá-las para a delegacia, encontram “um mato”. “Coloca essa frase: mulher, moradora de rua, eles nunca olham roupa. Sempre olham ela nua. Arrasta pra qualquer lugar e deu”, pede Meque.

Procurada pela reportagem, no início do ano, a Ouvidoria da Brigada Militar disse não ter registros de denúncias de violência sexual praticada por policiais militares contra mulheres em situação de rua. “Agradecemos seu contato, em resposta aos questionamentos sobre informações solicitadas a essa Ouvidoria, informamos que nenhum tipo de fato dessa natureza consta em nosso banco de dados nos últimos dois anos”, diz a resposta oficial.

Meque, que diz ser uma das mulheres que já sofreu esse tipo de violência, não chegou a citar datas de quando os fatos teriam ocorrido e reconhece que nunca procurou fazer nenhuma denúncia. “Medo mesmo. É por medo”.

IV. Requiém

O fogão feito por ela com uma chapa encontrada na rua, com a panela de feijão | Foto: Maia Rubim/Sul21

Na primeira conversa que tive com a Mãe Meque, ela já se deixou conhecer. Alguns assuntos, os pais, o primeiro marido, se falava ao menos por telefone com os filhos, ela desviava. Concordamos que precisávamos marcar outro dia para conversar. Mas, ela seguiria no Parque Harmonia dentro de algumas semanas? Jurou que sim. Um dos maiores problemas para quem faz pesquisas e trabalhos com a população em situação de rua é reencontrar alguém.

“Mesmo censos não têm precisão muito grande [do perfil dessa população], porque as pessoas não são encontradas nos mesmos locais. Essa falta de dados é complicada tanto para fazer perfil, quanto para usar como subsídio para políticas públicas”, afirma Talita Fernandes, mestranda da UFRGS cuja pesquisa leva o título “Espaço, corpo e cidadania: mulheres em situação de rua na cidade de Pelotas”.

Ao longo de alguns meses, segui tentando a segunda entrevista. Ninguém sabia da Meque em lugar algum. No começo de abril, depois que Paulinho, um morador de rua, foi assassinado no meio da tarde de um dia de semana na Praça da Matriz, o Movimento Nacional da População de Rua organizou um ato simbólico de luto. Ali, veio a notícia: Meque havia falecido, ainda em fevereiro, em um hospital. Ninguém sabia mais nada além disso, muitos dos amigos e conhecidos dela só ficaram sabendo sobre a morte no ato.

As primeiras histórias que começaram a circular diziam que ela havia sido levada às pressas do Harmonia, depois que começou a passar muito mal com uma tosse. Meque tinha tuberculose. Um relatório da Vigilância Epidemiológica de Porto Alegre, divulgado na revista Veja, aponta que a população de rua tem 65 vezes mais chances de adquirir a doença, que já tem status de epidemia. Os dois ou três jovens, por volta dos 25 e 30 anos, que moravam perto dela no galpão, só souberam dizer que “achavam” que ela havia sido levada para o Hospital Vila Nova. A instituição é a principal a atender pessoas em situação de rua. Quem entra lá, dificilmente sai com vida, segundo o povo da rua.

Não foi o que aconteceu com Meque. Ao menos não exatamente. Ela realmente esteve internada no Vila Nova por alguns dias, mas, como a educadora social Veridiana Farias Machado conseguiu descobrir depois, acabou sendo transferida para o Hospital Independência. Procurado na busca por mais informações – Qual a causa da morte? Quanto tempo ela esteve lá? Havia alguém com ela quando morreu? Para onde o corpo foi levado? Os filhos apareceram ou foram avisados? – o enfermeiro que atendeu o telefone disse que não poderia responder nada, a menos que estivesse falando com um membro da família. Ele só confirmou que a paciente esteve no hospital e faleceu ali mesmo.

Meque partiu no mesmo mistério em que vivia. Nem a amiga que acompanhou a entrevista ficou sabendo da internação. Quando ainda estava bem, debaixo das árvores do Harmonia, Meque olhava para ela com ternura, falando sobre a importância da amizade entre mulheres na rua. “É bem diferente (da amizade com homem). Porque o homem pode ignorar tua amizade e o querer ser protegida. Achar que quer outra coisa. A hora que eu estiver dormindo perto, já vem com a mãozinha alisando. Já, com outra mulher, não. Por isso tem a união entre moradoras de rua”.

O sonho dela, naquele dia de verão, era “ter um lugar onde pudesse deitar a cabeça e dormir descansadamente” e “um trabalho, para ter dinheiro dela, todos os meses”. O lugar só não poderia ser um abrigo. “Lá eu não posso ter a minha li-ber-da-de, como ser humano”.

No fim do nosso encontro no Harmonia, Meque exibia o fogão de ferro improvisado onde ia preparar o almoço dela e dos rapazes que viviam no mesmo galpão. Sem paredes, o lugar era um teto sob o qual colocavam colchões, os poucos pertences e por onde corria uma ninhada de cachorrinhos manchados de preto e branco. “Por que eu vim parar aqui? Sabe o que é aquele cachorrinho de rua, não tem lugar para parar?”.

Enquanto a panela de feijão fervia e ela mexia para não queimar, parecia feliz com o que tinha ali, naquele instante. Chegou a dizer que tendo onde cozinhar uma comida quente, estava “tudo ótimo”.

7 respostas em “Mulheres invisíveis: Vida e morte de Mãe Meque”

Parabéns pela reportagem.
Feita com carinho e consideração com o ser humano, Meque.
Muito emocionante e triste, por saber que o que leva pessoas às ruas é a falta do respeito e do amor ao outro.

Ajudo um grupo num trabalho voluntário com moradores de rua, e a historia dessa mulher é a mesma que ouvi de outras mulheres em situação de rua. Muito triste.

Mãe Meque! Presente! Que mais pessoas tenham sensibilidade para enxergar os milhões de mulheres vítimas da crueldade desse mundo. E pensar sobre o que podemos fazer, individualmente, para que isso acabe um dia.

Parabéns por reportar a vida de Mulheres em situação de rua e vulnerabilidade. Só lamento não ter tido uma avaliação de cunho étnico-racial. Uma Mulher Negra. A questão histórica da dívida social-econômica de um país com uma parcela da população, que até hoje é vítima desse racismo estrutural e suas consequências.. ” a carne mais barata do mercado é a carne negra..”

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